quarta-feira, 2 de novembro de 2011

ADVOGADA LENIR SANTOS FALA SOBRE O DECRETO 7508 QUE REGULAMENTOU A LEI 8080


Lenir Santos, advogada sanitarista, fala sobre o Decreto 7.508 e sobre o avanço jurídico ocorrido no setor.
Entrevista publicada no Blog com Dilma.
SUS alcança maturidade jurídica com regulamentação da Lei 8.080
O Decreto 7.508 que regulamenta a Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080/90) inova ao clarear as responsabilidades sanitárias previstas na Lei 8.080 dos entes federados sobre a oferta e organização das ações e serviços de saúde, por meio de contrato jurídico; estabelecer requisitos mínimos para a definição das Regiões de Saúde; priorizar a atenção primária como a principal porta de entrada do SUS; impor metas e indicadores para o planejamento da saúde; e definir o padrão da integralidade da assistência. O decreto consolida normas que estão na Lei 8.080, porém não explicitadas até então, possibilitando maior transparência para a gestão da Saúde e, com isso, fortalecendo o controle social.
O Portal para Gestores do SUS sobre Redes de Atenção à Saúde entrevistou a advogada sanitarista Lenir Santos, que teve uma contribuição importantíssma na publicação do Decreto 7.508.
Como foi a construção do documento que originou o Decreto 7.508 que regulamenta a Lei 8.080/1990?
Lenir Santos – Desde 2005 vinha aprofundando meus estudos sobre algumas questões referentes ao SUS que precisavam ser melhores equacionadas por parecerem antinômicas. Comecei a estudar a integralidade da assistência à saúde, definida no art. 7º, II, da Lei 8.080/90, uma vez que a crescente judicialização estava contribuindo para desorganizar o sistema de saúde e me chamava a atenção o fato de nenhum magistrado, tampouco nossos gestores e especialistas em saúde, se debruçarem sobre a questão jurídica da integralidade, praticamente desconhecendo a sua definição na Lei. Nossos gestores e especialistas se fixaram nas portarias ministeriais ignorando que havia uma lei que precisava ser observada e que estava sendo inclusive desrespeitada. Passei a escrever artigos a respeito da integralidade da assistência, da questão interfederativa, nunca lembrada nem falada pelos gestores da saúde que ficavam centrados nas relações intergestores (transformando o SUS num sistema que parecia descolado do ente federativo, quase um “governo da saúde” apartado do ente federativo e do próprio chefe do Poder Executivo). Tudo era intergestores e jamais interfederativo. Escrevi, então, um livro, em co-autoria com Luiz Odorico Monteiro de Andrade, “SUS: O espaço da gestão inovado e dos consensos interfederativos”, o qual na segunda e terceira partes, centravam-se em temas jurídicos que abordavam a questão, aparentemente antinômica, da autonomia dos entes federativos e sua interdependência no SUS, explicitando que esta interdependência se fundava na integralidade da assistência que, nos termos da lei, exigia permanente inter-relação entre os entes federativos no SUS, fazendo nascer, de fato, um sistema interfederativo de saúde. Sendo o SUS um sistema interfederativo, seria imperioso deslindar questões jurídicas importantes, como o interesse local (municipal), a forma de firmar compromissos interfederativos e definir obrigações comuns e individuais dos entes e organizar o SUS regionalmente, conforme determinação constitucional.
Em 2008, o Ministro Temporão me pediu uma proposta de trabalho para melhor organizar e consolidar o SUS. A minha proposta foi a edição de um decreto regulamentando a Lei 8.080. Aceita a proposta, ela somente veio a se concretizar no segundo semestre do ano de 2010. Quando o Ministro Padilha tomou conhecimento, pelo atual Secretário de Gestão Estratégica e Participativa, Odorico Monteiro, da existência da minuta do decreto e de sua importância, me chamou para discuti-lo nas instâncias internas do Ministerio da Saúde. Este processo levou uns meses, incorporando, após esta etapa, a discussão com o Conasems e o Conass; vencidas estas duas fases, o projeto foi para a Casa Civil do Governo – que introduziu cortes de alguns capítulos e efetuou modificações de forma – com o Decreto sendo publicado em 28 de junho de 2011.
Qual é o peso dessa norma jurídica e quais são os desdobramentos decorrentes da publicação do Decreto 7.508?
O decreto, na hierarquia das normas, está abaixo de uma lei e é ato de competência exclusiva do Presidente da República. As leis devem ser as mais genéricas possíveis e os decretos devem explicitá-las, sem restringir ou expandir seus conteúdos. A Lei 8.080/90, desde sua edição, carecia de explicitação de conceitos ali expostos, como a regionalização, a integralidade, as redes de serviços e sua forma organizativa que pressupõe a gestão compartilhada – até então sempre se falava em cooperação entre os entes, mas sempre defendi que o SUS é mais que cooperação, é gestão compartilhada. A gestão compartilhada faz mais sentido por mais ampla do que a gestão cooperativa. Mas o Governo Federal, Ministério da Saúde, preferiu o caminho de ir definindo alguns desses conceitos por portarias (uma sempre sucedendo a outra diante da facilidade de sua edição, com conceitos muitas vezes conflitantes), uma maneira equivocada de regulamentar uma lei, uma vez que a portaria deve disciplinar internamente o orgão e não regulamentar a lei.
Com a publicação do Decreto 7.508, temos agora a tarefa de cumpri-lo. Ele terá que se tornar uma realidade nacional e o SUS deverá se organizar de acordo com seus regramentos, dentre eles, o de como organizar a região de saúde; organizar os colegiados interfederativos (comissões intergestores) que agora tem atribuições definidas e que passa a ser um colegiado do SUS e não do ente federativo que a criou, Ministério da Saúde e secretarias estaduais; elaborar a Renases, a relação nacional de ações e serviços de saúde, que na realidade é o padrão de integralidade do SUS nacional; celebrar os contratos de ação pública e assim por diante.
O Decreto 7.508 reforça alguns conceitos, como Regiões de Saúde e Redes de Atenção à Saúde. Qual a contribuição desse Decreto para a organização do Sistema em Redes de Atenção à Saúde?
O Decreto define o que é uma Região de Saúde e quando ela pode ser instituída. Define, ainda, as Redes de Atenção à Saúde impondo uma organização sistêmica e regionalizada para as ações e serviços de saúde. Essa organização sistêmica se consubstancia nas Redes de Atenção à Saúde. Sem a Rede de Atenção à Saúde
não há sistema integrado, não há como conformar as interdependências dos entes federativos na Região de Saúde. Esta interdependência, que redunda na gestão compartilhada de serviços, desagua nas redes. Contudo, as redes, para existirem, precisam que outros elementos, intrínsecos a ela, como o sistema nacional de informações integrado em saúde, a partir da Região de Saúde. Sem rede, o conceito de sistema do SUS cai por terra e sem sistema de informações integrado não há rede.
Ao definir como a principal porta de entrada a atenção primária, facilita a organização do SUS em Redes de Atenção?
Sem dúvida. Com a atenção primária sendo a ordenadora do SUS – a que inicia o processo de atenção à saúde, faz os encaminhamentos ou referenciamentos e continua a cuidar daquele cidadão – a rede de atenção à saúde é elemento essencial para este caminhar do cidadão dentre os serviços de saúde que devem se organizar em nível de complexidade crescente e garantir, ao final, a integralidade da assistência à saúde.
O Contrato Organizativo da Ação Pública da Saúde vem para substituir o Termo de Compromisso do Pacto pela Saúde?
O termo de compromisso do Pacto não tem peso jurídico. Um termo de compromisso não garante segurança jurídica aos seus signatários e não é considerado um título judicial. Ele tem apenas um aspecto moral, mas não se poderia obrigar um ente da federação ao seu cumprimento por ser destituído de cláusula penal.
É apenas um dizer de que vou ou não vou fazer tal coisa. Além do mais, o termo de compromisso, me parece, era firmado apenas pelo ente federativo que dizia se compromissar em realizar isto ou aquilo. O contrato de ação pública é um acordo multilateral que obriga os entes signatários ao seu cumprimento. O contrato garante maior segurança jurídica à avença interfederativa, obrigando os entes ao seu cumprimento, sob pena de as cláusulas penais serem executadas. Ele não substituiu o termo de compromisso porque esse documento não tinha por finalidade organizar o SUS regional, o que o contrato tem. O contrato tem a finalidade de definir as responsabilidades da gestão compartilhada do SUS entre os entes signatários numa Região de Saúde. O contrato, na realidade, organiza a Região de Saúde e a rede de atenção à saúde, a qual responde pela integralidade da assistência à saúde. São títulos diferentes no mundo jurídico, com diferentes finalidades e segurança. O termo de compromisso era apenas um compromisso isolado de um ente da Federação. Além do mais o contrato de ação pública é uma espécie (tipo) de contrato administrativo que visa organizar de maneira compartilhada ações, funções, serviços, como é o caso da saúde. Na saúde, os entes federativos não atuam sozinhos; atuam de forma compartilhada sob pena de não existir o SUS que é um sistema de integração de ações e serviços.
O Decreto possibilita penalizar os gestores pelo não cumprimento dos compromissos assumidos na Saúde? Pode ser interpretado como a almejada responsabilidade sanitária?
O Decreto não tem o condão de penalizar diretamente os entes pelo descumprimento de compromissos contratuais. Ele, na realidade, reforça, o que já está em leis, que é a necessidade de o Ministério da Saúde notificar os órgãos e entes competentes quando houver malversação de recursos, descumprimento de obrigações legais, como a de realizar relatório de gestão, dentre outras coisas. As penalidades contratuais – que eu gosto de chamar de responsabilização – devem ser as que estarão explicitadas no contrato. O contrato terá uma de suas partes destinadas ao monitoramento, avaliação, controle e fiscalização da gestão do contrato. Nesta fase, a não realização das obrigações pactuadas deverão ser objeto de responsabilização. Mas o contrato vai trazer importantes elementos que permitirão verificar as causas do descumprimento para poder promover ajustes antes de penalizar os entes faltosos. Deve a gestão do contrato primar para não permitir a má-gestão, o não cumprimento de metas. O leite não deve derramar. Devemos adotar uma política de impedir o leite derramado, o que é extremamente prejudicial para a população. A atuação neste caso deve ser preventiva, concomitante e educativa para evitar o mal maior que é o descumprimento do contrato.
Quais desafios e resistências a serem superados para a efetivação do Decreto 7.508 no modus operandi do SUS?
Qualquer mudança no serviço público – como em nossas vidas particulares – gera resistência. É natural que isto aconteça. Mas a partir do momento em que se verifica que o Decreto é uma extensão da Lei 8080/90, mas explicitada, mas detalhada e interpretada à luz de uma grande maturidade política e jurídica de compreensão do SUS, as resistencias irão diminuir e creio que haverá mais adesão do que resistência. Até porque o Decreto recoloca o SUS nos trilhos da Constituição Federal e da Lei 8080/90, com perseguição do alcance de metas, verificação de resultados qualitativos e cumprimento de verdadeiros e reais planos de saúde dos entes da Federação.