Lenir Santos, advogada sanitarista,
fala sobre o Decreto 7.508 e sobre o avanço jurídico ocorrido no setor.
Entrevista publicada no Blog com
Dilma.
SUS alcança maturidade jurídica com
regulamentação da Lei 8.080
O Decreto 7.508
que regulamenta a Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080/90) inova ao clarear as
responsabilidades sanitárias previstas na Lei 8.080 dos entes federados sobre a
oferta e organização das ações e serviços de saúde, por meio de contrato
jurídico; estabelecer requisitos mínimos para a definição das Regiões de Saúde;
priorizar a atenção primária como a principal porta de entrada do SUS; impor
metas e indicadores para o planejamento da saúde; e definir o padrão da
integralidade da assistência. O decreto consolida normas que estão na Lei
8.080, porém não explicitadas até então, possibilitando maior transparência
para a gestão da Saúde e, com isso, fortalecendo o controle social.
O Portal para Gestores
do SUS sobre Redes de Atenção à Saúde entrevistou a advogada sanitarista Lenir
Santos, que teve uma contribuição importantíssma na publicação do Decreto
7.508.
Como foi a
construção do documento que originou o Decreto 7.508 que regulamenta a Lei 8.080/1990?
Lenir Santos –
Desde 2005 vinha aprofundando meus estudos sobre algumas questões referentes ao
SUS que precisavam ser melhores equacionadas por parecerem antinômicas. Comecei
a estudar a integralidade da assistência à saúde, definida no art. 7º, II, da
Lei 8.080/90, uma vez que a crescente judicialização estava contribuindo para
desorganizar o sistema de saúde e me chamava a atenção o fato de nenhum
magistrado, tampouco nossos gestores e especialistas em saúde, se debruçarem
sobre a questão jurídica da integralidade, praticamente desconhecendo a sua
definição na Lei. Nossos gestores e especialistas se fixaram nas portarias
ministeriais ignorando que havia uma lei que precisava ser observada e que
estava sendo inclusive desrespeitada. Passei a escrever artigos a respeito da
integralidade da assistência, da questão interfederativa, nunca lembrada nem
falada pelos gestores da saúde que ficavam centrados nas relações intergestores
(transformando o SUS num sistema que parecia descolado do ente federativo,
quase um “governo da saúde” apartado do ente federativo e do próprio chefe do
Poder Executivo). Tudo era intergestores e jamais interfederativo. Escrevi,
então, um livro, em co-autoria com Luiz Odorico Monteiro de Andrade, “SUS: O
espaço da gestão inovado e dos consensos interfederativos”, o qual na segunda e
terceira partes, centravam-se em temas jurídicos que abordavam a questão,
aparentemente antinômica, da autonomia dos entes federativos e sua
interdependência no SUS, explicitando que esta interdependência se fundava na
integralidade da assistência que, nos termos da lei, exigia permanente
inter-relação entre os entes federativos no SUS, fazendo nascer, de fato, um
sistema interfederativo de saúde. Sendo o SUS um sistema interfederativo, seria
imperioso deslindar questões jurídicas importantes, como o interesse local
(municipal), a forma de firmar compromissos interfederativos e definir
obrigações comuns e individuais dos entes e organizar o SUS regionalmente,
conforme determinação constitucional.
Em 2008, o
Ministro Temporão me pediu uma proposta de trabalho para melhor organizar e
consolidar o SUS. A minha proposta foi a edição de um decreto regulamentando a
Lei 8.080. Aceita a proposta, ela somente veio a se concretizar no segundo
semestre do ano de 2010. Quando o Ministro Padilha tomou conhecimento, pelo
atual Secretário de Gestão Estratégica e Participativa, Odorico Monteiro, da
existência da minuta do decreto e de sua importância, me chamou para discuti-lo
nas instâncias internas do Ministerio da Saúde. Este processo levou uns meses,
incorporando, após esta etapa, a discussão com o Conasems e o Conass; vencidas
estas duas fases, o projeto foi para a Casa Civil do Governo – que introduziu
cortes de alguns capítulos e efetuou modificações de forma – com o Decreto
sendo publicado em 28 de junho de 2011.
Qual é o peso
dessa norma jurídica e quais são os desdobramentos decorrentes da publicação do
Decreto 7.508?
O decreto, na
hierarquia das normas, está abaixo de uma lei e é ato de competência exclusiva
do Presidente da República. As leis devem ser as mais genéricas possíveis e os
decretos devem explicitá-las, sem restringir ou expandir seus conteúdos. A Lei
8.080/90, desde sua edição, carecia de explicitação de conceitos ali expostos,
como a regionalização, a integralidade, as redes de serviços e sua forma
organizativa que pressupõe a gestão compartilhada – até então sempre se falava
em cooperação entre os entes, mas sempre defendi que o SUS é mais que
cooperação, é gestão compartilhada. A gestão compartilhada faz mais sentido por
mais ampla do que a gestão cooperativa. Mas o Governo Federal, Ministério da
Saúde, preferiu o caminho de ir definindo alguns desses conceitos por portarias
(uma sempre sucedendo a outra diante da facilidade de sua edição, com conceitos
muitas vezes conflitantes), uma maneira equivocada de regulamentar uma lei, uma
vez que a portaria deve disciplinar internamente o orgão e não regulamentar a
lei.
Com a
publicação do Decreto 7.508, temos agora a tarefa de cumpri-lo. Ele terá que se
tornar uma realidade nacional e o SUS deverá se organizar de acordo com seus
regramentos, dentre eles, o de como organizar a região de saúde; organizar os
colegiados interfederativos (comissões intergestores) que agora tem atribuições
definidas e que passa a ser um colegiado do SUS e não do ente federativo que a
criou, Ministério da Saúde e secretarias estaduais; elaborar a Renases, a
relação nacional de ações e serviços de saúde, que na realidade é o padrão de
integralidade do SUS nacional; celebrar os contratos de ação pública e assim
por diante.
O Decreto 7.508
reforça alguns conceitos, como Regiões de Saúde e Redes de Atenção à Saúde.
Qual a contribuição desse Decreto para a organização do Sistema em Redes de
Atenção à Saúde?
O Decreto
define o que é uma Região de Saúde e quando ela pode ser instituída. Define,
ainda, as Redes de Atenção à Saúde impondo uma organização sistêmica e
regionalizada para as ações e serviços de saúde. Essa organização sistêmica se
consubstancia nas Redes de Atenção à Saúde. Sem a Rede de Atenção à Saúde
não há sistema
integrado, não há como conformar as interdependências dos entes federativos na
Região de Saúde. Esta interdependência, que redunda na gestão compartilhada de
serviços, desagua nas redes. Contudo, as redes, para existirem, precisam que
outros elementos, intrínsecos a ela, como o sistema nacional de informações
integrado em saúde, a partir da Região de Saúde. Sem rede, o conceito de
sistema do SUS cai por terra e sem sistema de informações integrado não há
rede.
Ao definir como
a principal porta de entrada a atenção primária, facilita a organização do SUS
em Redes de Atenção?
Sem dúvida. Com
a atenção primária sendo a ordenadora do SUS – a que inicia o processo de
atenção à saúde, faz os encaminhamentos ou referenciamentos e continua a cuidar
daquele cidadão – a rede de atenção à saúde é elemento essencial para este
caminhar do cidadão dentre os serviços de saúde que devem se organizar em nível
de complexidade crescente e garantir, ao final, a integralidade da assistência
à saúde.
O Contrato
Organizativo da Ação Pública da Saúde vem para substituir o Termo de
Compromisso do Pacto pela Saúde?
O termo de
compromisso do Pacto não tem peso jurídico. Um termo de compromisso não garante
segurança jurídica aos seus signatários e não é considerado um título judicial.
Ele tem apenas um aspecto moral, mas não se poderia obrigar um ente da
federação ao seu cumprimento por ser destituído de cláusula penal.
É apenas um
dizer de que vou ou não vou fazer tal coisa. Além do mais, o termo de
compromisso, me parece, era firmado apenas pelo ente federativo que dizia se
compromissar em realizar isto ou aquilo. O contrato de ação pública é um acordo
multilateral que obriga os entes signatários ao seu cumprimento. O contrato
garante maior segurança jurídica à avença interfederativa, obrigando os entes
ao seu cumprimento, sob pena de as cláusulas penais serem executadas. Ele não
substituiu o termo de compromisso porque esse documento não tinha por
finalidade organizar o SUS regional, o que o contrato tem. O contrato tem a
finalidade de definir as responsabilidades da gestão compartilhada do SUS entre
os entes signatários numa Região de Saúde. O contrato, na realidade, organiza a
Região de Saúde e a rede de atenção à saúde, a qual responde pela integralidade
da assistência à saúde. São títulos diferentes no mundo jurídico, com
diferentes finalidades e segurança. O termo de compromisso era apenas um
compromisso isolado de um ente da Federação. Além do mais o contrato de ação
pública é uma espécie (tipo) de contrato administrativo que visa organizar de
maneira compartilhada ações, funções, serviços, como é o caso da saúde. Na
saúde, os entes federativos não atuam sozinhos; atuam de forma compartilhada
sob pena de não existir o SUS que é um sistema de integração de ações e
serviços.
O Decreto
possibilita penalizar os gestores pelo não cumprimento dos compromissos
assumidos na Saúde? Pode ser interpretado como a almejada responsabilidade
sanitária?
O Decreto não
tem o condão de penalizar diretamente os entes pelo descumprimento de
compromissos contratuais. Ele, na realidade, reforça, o que já está em leis,
que é a necessidade de o Ministério da Saúde notificar os órgãos e entes
competentes quando houver malversação de recursos, descumprimento de obrigações
legais, como a de realizar relatório de gestão, dentre outras coisas. As
penalidades contratuais – que eu gosto de chamar de responsabilização – devem
ser as que estarão explicitadas no contrato. O contrato terá uma de suas partes
destinadas ao monitoramento, avaliação, controle e fiscalização da gestão do
contrato. Nesta fase, a não realização das obrigações pactuadas deverão ser
objeto de responsabilização. Mas o contrato vai trazer importantes elementos
que permitirão verificar as causas do descumprimento para poder promover
ajustes antes de penalizar os entes faltosos. Deve a gestão do contrato primar
para não permitir a má-gestão, o não cumprimento de metas. O leite não deve
derramar. Devemos adotar uma política de impedir o leite derramado, o que é extremamente
prejudicial para a população. A atuação neste caso deve ser preventiva,
concomitante e educativa para evitar o mal maior que é o descumprimento do
contrato.
Quais desafios
e resistências a serem superados para a efetivação do Decreto 7.508 no modus
operandi do SUS?
Qualquer
mudança no serviço público – como em nossas vidas particulares – gera
resistência. É natural que isto aconteça. Mas a partir do momento em que se
verifica que o Decreto é uma extensão da Lei 8080/90, mas explicitada, mas
detalhada e interpretada à luz de uma grande maturidade política e jurídica de
compreensão do SUS, as resistencias irão diminuir e creio que haverá mais
adesão do que resistência. Até porque o Decreto recoloca o SUS nos trilhos da
Constituição Federal e da Lei 8080/90, com perseguição do alcance de metas,
verificação de resultados qualitativos e cumprimento de verdadeiros e reais
planos de saúde dos entes da Federação.